15 novembro 2007

CARTA PARA OS MEUS DONOS

S. Pedro de Moel, Setembro de 2007

Querida dona

Antes de mais convêm esclarecer que estou morto, como sabes. Sou o vosso cão; vosso sim, teu e dele, ou já se esqueceram que me adoptaram por volta de 1966?!...

Ainda me lembro, quando cheguei a S. Pedro de Moel, triste, magro e esfomeado. Rondei a tua porta, tinha esperança que me calhasse um ossito das sobras lá de casa.

Quando me viste, foi simpatia à primeira vista e exclamaste:

Ó mãe, arranje-me qualquer coisa para dar a comer a este infeliz, coitadinho!

Sem saber, acabava de ser baptizado e fiquei a chamar-me Infeliz.

Nunca tinha tido um nome. Tão pouco me lembro de quando e onde nasci. Mas recordo-me bem de quando comecei a viver na tua casa; pouco tempo antes d’ele ter aparecido.

Ele quem?!... por favor, não faças de mim parvo. Sabes muito bem de quem estou a falar. Ele!... por aí quando se fala dele, é só mesmo Ele… sim o “bananita” esse mesmo, o “mais que tudo” o “Besnico”.

O que eu te aturei, o que eu vos aturei, e com o tempo habituei-me a considera-los meus donos.

Fui o teu amigo, o teu confidente e vi-te chorar muitas lágrimas.

Mas que par… não perdiam uma oportunidade para correrem para os braços um do outro. Todavia melhor seria que nunca se tivessem conhecido. Tão tolo era um, como o outro, mas amavam-se e disso eu sei.

Quando me adoptaste, passei a ter direito a coleira, mesa farta e a dormir na garagem, acho que até engordei; uma verdadeira vida de cão, mas em liberdade.

Com o tempo, principalmente no Inverno, esgueirava-me para o teu quarto e dormia no tapete aos pés da tua cama, escondido da tua Mãe.

A tua mãe é que era o problema.

Não que ela me tratasse mal, melhor dizendo, nos tratasse mal.

Não, não, muito pelo contrário, até nos tratava muito bem, só que não gostava de intimidades com cachorros.
Dava-nos abrigo, comidinha farta, umas palavras de carinho, mas ao contrário do teu pai, ela não queria intimidades.

Para ela, cachorros e Besnicos estavam ao mesmo nível; bom trato e pouca confiança, e todavia gostava de nós.

Pois é, mas ambos nos esgueirávamos pela calada da noite, eu tinha mais sorte, entrava, ele ficava do lado de fora.

Nunca consegui perceber porque é que aquele parvo, não saltava a janela e se escondia como eu debaixo da cama.

Bem, penso que já sabes quem sou?... Um Cão Preto Chamado Infeliz.

Apesar de tudo fui muito feliz enquanto vivi na vossa companhia.

Recordo-me do dia em que ele chegou e da tua agitação.

Fui o primeiro a saber da sua existência, tinhas-me contado. Fui-lhe apresentado, mesmo antes dos teus Pais.

Depois das cerimónias e salamaleques lá de casa, foste exibi-lo ás tuas amigas, São Pedro veio ás janelas para o ver, e o parvo foi na conversa.

Uma delas, proferiu uma frase, que mesmo morto como estou, ainda hoje tenho vontade de lhe dar uma mordidela, aquela frase caiu em mim como um mau presságio:

- Olha, agora põe esse a andar como fizeste com o outro!

Penso que seria apenas a inveja a falar. Todos nós sabemos como são as fêmeas com os machos das amigas. Bolas, lá nisso os cães, digo, os homens são mais francos.

Pois minha amiga, agradeço-vos terem-me proporcionado cerca de três anos de felicidade na vossa companhia. Era tão bonito vê-los…

Depois, veio aquele dia penoso e tu provavelmente sem sentires, transferiste a tua mágoa, a tua revolta, para o pobre rapaz. Nunca percebeste que, se tu tinhas perdido um Pai, ele, mesmo sem derramar uma lágrima, sofria a perda dum amigo.

Só eu sei, que para além daquelas truculentas discussões, eles eram grandes amigos, num jogo de forças e cumplicidade, como é normal entre “rapazes”, sem ódio, com amor e com os olhos postos em ti, no teu futuro.

Não posso revelar, só eu sei o que escutei na última conversa que ambos tiveram… falaram de ti.

Quanto à minha morte, como sabes fui assassinado, não vi o meu agressor, mas pelo faro sei que não foi ele. Nem sequer é culpado pelo do telefonema de que o acusas e que me contas-te, lembras-te?

Quantas lágrimas escusadas, quanta raiva contida e sem razão, mas acredito que tudo isso foi obra de alguém mal intencionado. O pobre ainda hoje não entende o que se passou. Podias ao menos deixar que ele se explicasse, devias-lhe, deves-lhe isso.

Querida dona, ao escrever-te esta carta, cumpri o meu dever de cão fiel.

Finalmente depois de tantos anos posso partir para o céu, o céu dos cães, onde vagueiam lindas cadelinhas e onde sem receio, ao Domingo durante a missa, posso entrar pela igreja e deitar-me, como vocês me ensinaram, aos pés do padre, também ele recordação.

Apenas gostaria de saber se aceitas conversar com ele, que de ti já nada quer. Apenas precisa de te ver…

Um café, uma mesa e duas cadeiras, como diz um amigo nosso, o JUDA, autor do Blog “O SAL DA NOSSA PELE” num dos seus mais belos poemas que melhor expressa a vontade do meu dono “Preciso de te ver”. (escrito e publicado em 5 de Maio de 2006)

Para ti querida dona, deixo aqui uma lambidela, uhhmmpff. Foste uma pessoa importante na minha vida.

São Pedro de Moel, 11 de Setembro de 2007
O vosso Cão Preto Chamado Infeliz
.
PS - Parabéns pelo dia do teu aniversário.

C/Cópia para
Besnico di Roma

* * * * *
A todos que lerem esta carta e que gostem de boa poesia, recomendo uma visita, ao blog do meu amigo António "Juda"
O SAL DA NOSSA PELE.


7 Comments:

At 16 novembro, 2007 04:30, Blogger Maria said...

Rais parta, Besnico, tens cá uma forma de contar estórias...
... a tua outra metade, o outro terço de ti....
Abraço-te, e saio daqui com uma lagrimita no olho... será da hora, será da hora...

Beijinhos

 
At 16 novembro, 2007 12:37, Blogger Paula Raposo said...

Palavras para quê?! Uma carta enternecedora...beijos.

 
At 19 novembro, 2007 18:48, Blogger Bichodeconta said...

Lindo, fiquei com a secreta esperança de que a Matilde, minha cadela que morreu há pouco, atropelada, me escreva uma carta.. Melhor, me escreva muitas cartas.. Que saudades Matilde..

 
At 20 novembro, 2007 01:44, Blogger Maria said...

"O bananita"???? e deixas um Infeliz tratar-te assim???

Beijnhos

 
At 20 novembro, 2007 13:56, Blogger Paula Raposo said...

Sr. Romano Besnico!! Por essas e outras é que eu gosto do teu humor!! Eh eh como não sei o teu email, tenho que escrever aqui!! Beijos.

 
At 20 novembro, 2007 22:23, Blogger Papoila said...

Besnico!
Só tu para uma carta que me comoveu de um feliz cachorro Infeliz!
Beijos

 
At 21 novembro, 2007 19:10, Blogger Rosa dos Ventos said...

Tinha-te perdido de vista mas em boa hora te reencontrei!
Esta estória comoveu-me e como o seu cenário é S. Pedro de Moel se quiseres rever alguns dos seu encantos vai até ao meu blog e consulta os dias 28 e 29 de Outubro.

Abraço

 

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