FEELINGS
São coisas, aromas, sabores e outros estímulos sensoriais que nos ficam gravados no inconsciente para o resto da vida e que a dado momento, accionados por qualquer mecanismo desconhecido, reaparecem e nos transportam a outras dimensões…
* * * * *
Hoje fui a Lisboa à Av. 5 de Outubro, próximo da qual vivi a primeira metade da minha infância.
Na esquina da avenida Barbosa du Bocage, olhei para Norte e vi a moderna ponte de comboios que a atravessa. Foi então que me recordei de quando eu era menino com cinco seis anos de idade.
Quando íamos para fora, na Primavera ou no início do Verão, saíamos da avenida Barbosa du Bocage, voltávamos à esquerda na avenida 5 de Outubro, e cruzávamos por baixo a tal ponte dos comboios; não esta, mas a outra, a antiga em ferro negro. Para mim, menino que era, cruzar aquela ponte representava o início das férias.
Na esquina da avenida Barbosa du Bocage, olhei para Norte e vi a moderna ponte de comboios que a atravessa. Foi então que me recordei de quando eu era menino com cinco seis anos de idade.
Quando íamos para fora, na Primavera ou no início do Verão, saíamos da avenida Barbosa du Bocage, voltávamos à esquerda na avenida 5 de Outubro, e cruzávamos por baixo a tal ponte dos comboios; não esta, mas a outra, a antiga em ferro negro. Para mim, menino que era, cruzar aquela ponte representava o início das férias.
Anos 40/50 - Antigo viaduto da Avenida 5 de Outubro em Lisboa
Viaduto Avenida da República - Lisboa anos 40/50
(fotografia de Armando Serodio)
A ponte não estava longe da esquina da minha rua, apenas umas centenas de metros, como ainda hoje. Mas na minha ingenuidade de criança, era para alem dela que começava o mundo.
Era por ali, pensava eu, que se saia para outros espaços de que ouvia falar nas conversas de adultos, quando falavam de Paris, Mónaco e da “Riviera Francesa”, que aqueles senhores elegantes que nos visitavam e meus familiares tão bem conheciam e tanto gabavam.
Também era por ali, pensava eu, que se saia para o Estoril, que eu não conhecia.
Falavam baixo e de modo não explícito, por causa da criança que brincava no chão e que era eu, ou seria por causa das senhoras, suas esposas, que tagarelavam próximo sobre os vestidos e as capelines que tinham estreado no Buçaco ou em Biarritz no último verão?!...
Os homens contavam as suas aventuras e eu criança adivinhava, entendia, mulheres e automóveis, e não via mal nenhum nisso.
Elas também falavam do senhor que tinha uma lancha a motor no Estoril e do outro que era muito bem parecido e ia para o Luso num Ferrari.
Para mim, tudo isto começava para lá daquela ponte misteriosa que ficava ao fundo da avenida 5 de Outubro, e tinha a certeza disso; então não era por lá que nós passávamos quando íamos para o Luso ou para São Jorge para casa da Maria do Rosário?!...
Fui crescendo, e com isso autorização para me deslocar sozinho para a escola e ir até à tabacaria da esquina comprar lápis e borrachas, mas sem sair do passeio. Sim que era necessário ter cuidado com os automóveis, não fosse dar-se o caso de aparecer algum…
Um dia aventurei-me. Tinham-me dado cinco tostões (cerca de cinco cêntimos de hoje, mas com os quais se podia comprar muito mais coisas) e fui mesmo até à esquina da 5 de Outubro, olhei em ambos os lados e nem um automóvel à vista; eu era capaz… numa corrida atravessei a rua e fui à avenida de Berna a uma fábrica de gelados, onde já tinha estado com a nossa empregada e comprei um gelado de dois sabores que me custou dois ou três tostões.
No regresso, de gelado na mão, já na esquina da minha rua olhei para aquela ponte mágica e pensei:
- Um dia quando for crescido vou passar aquela ponte sozinho… talvez de automóvel!?... num descapotável como o senhor Sousa quando vai visitar a amante.
Claro que eu não sabia o que era uma amante. Não percebia se era bom ou mau, falava-se tanto disso, mas eu não compreendia.
As mulheres criticavam o Sousa e os homens achavam graça às suas histórias.
Uma coisa eu sabia; a Luisa, a mulher do Sousa, não gostava nada disso.
Tudo isto era comentado entre dentes, para eu não perceber. Mas perceber o quê?...
Por outro lado, se o Sousa era tão amigo da amante que até lhe deu um automóvel, porque é que não a trazia cá a casa para jantar connosco?... Só se era por causa da egoísta da Luisa, que parecia não gostar nada da amiga do marido.
Para mim nada disto fazia sentido. Vejam só se eu fosse proibido de brincar com a “Tutinha” só porque a minha prima Odete não gostava dela?!...
Bem, não interessa, vá lá um miúdo perceber estas coisas dos crescidos. São tão parvos que nem me deixavam ir sozinho até ao Parque Infantil do Jardim do Campo Pequeno. Eu sou capaz, já lá fui tanta vez com a minha mãe e com a minha tia… não me perdia!
Lago do Campo Grande - ao fundo o antigo restaurante e salão de chá
Mas voltando à ponte, um dia na Primavera, já rapazito com os meus sete anos, fui com a minha Tia ao Campo Grande, andei de barco no lago e depois fomos lanchar á Tágide, um salão de chá muito elegante sobranceiro ao lago, com um grande relvado e que pelas cinco da tarde, nos anos cinquenta, com orquestra ao vivo, se realizavam “Os Chás Dançantes da Tágide” transmitidos em directo pela rádio.
Salão de chá do lago do Campo Grande em Lisboa 1943
O local era frequentado por gente elegante, mamãs solteiras e tias com os seus sobrinhos, de calções, lacinho e sapatos de verniz, como mandava a solenidade do local.
Por perto os “senhores Sousas” acompanhados com as amigas de quem as mulheres não gostavam. Bem feito, se não fossem tão egoístas podiam ir e dançar também ou conversar com as amigas, como a minha Tia.
Pois é meus amigos, “feelings”.
Tal como hoje, já passei aquela ponte muitas vezes. Mas agora que estou mais velho, as minhas pontes estão cada vez mais longe. Mas ainda penso muitas vezes que:
- Quando for crescido hei-de passar aquela ponte sozinho, num carro descapotável, como o senhor Sousa quando ia visitar a amante.
Ilaha do lago do Campo Grande - Lisboa anos 50
Ponte de acesso à ilha do lago do Campo Grande - Lisboa anos 40/50
22 Comments:
O que são as coisas... eu a pensar que tinhas deixado de escrever neste teu blog, e quando leio os comentários ao post da Dulce, encontro-te vivo, de boa saúde e de novo a apostar nestes textos magníficos que tão bem sabes escrever. Ainda bem. Fiquei muito contente. Um abraço :)))))))
Besnico:
Um texto magnífico! O que se comprava com 5 tostões não tem nada a ver com o que se compra com os cinco cêntimos... Gelado de dois sabores em barquilho? Adorei!
Atravessa a ponte vá lá...
Beijos
Pois é querida Papoila, se me derem cinco tostões, passo a ponte, e vou comprar um gelado, e vou… e vou ter ao céu com eles, no meu carro descapotável… como o Sousa, quando ia visitar a amante.
Olá olá...
Gostei, na verdade estou a gostar muito da escrita do meu vizinho...
Este FEELINGS está muito interesaante e como o conheço há já alguns anos, ainda mais me delicia o genero de escrita. Aliás tenho andado a dar umas espreitadelas e digo-lhe que estou a apreciar muito estas leituras. Só fiquei a pensar na vizinha do 5º.esq. que está com Alzheimer...tadinha...
Um abraço
Gostei muito deste texto. Fez-me pensar também em alguns dos meus feelings (e é engraçado porque hoje escrevi um mini-post sobre a música com este nome, porque descobri que o seu compositor é brasileiro)
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria Lídia Albuquerque
Mas que grande bronca! ah ah ah
Quando eu escrevi isso nem me lembrei. Saiu 5º esquerdo como podia ter dito outra coisa qualquer.
Com 40 vizinhos no prédio e fui logo acertar no 5º esquerdo. Já alguém me tinha dito, que isto da escrita pode ferir sensibilidades… ih ih ih!
Cumprimentos ao meu vizinho e espero que isto não ensombre a nossa amizade.
Gostei deste teu 'feelings'...beijos.
Que delicia esta viagem á sua infancia, que não se distancia da minha.. Somos da mesma casta mais ou menos,, Fez-me viajar á minha infancia, e ao que então tudo parecia diferente e mais simplificado.. Parabéns pelo tema e sobretudo pela qualidade que põe em tudo o que escreve.. Um abraço, Ell
Uma viagem que a minha filha me falou.
Como é que eu estou depois do café no Bambi? Ora, na segunda lá estava eu e o "mar"... no António...
Abraço...
Camarada....
em primeiro... um abraço!
Em segundo... um abraço!
Não quero usar palavras!
Dizer-te apenas que é muito bom rever-te!
Paulo
Engraçado!...
Beijos
É a chamada atracção pela passagem para o lado de lá!
Lembro-me bem dessa ponte muito enegrecida...
Gostei das tuas recordações!
Meu amigo, estou a restringir quem visita o meu blog, mas gostaria de o "ver" por lá, no entanto não tenho o seu e-mail. Se não se importasse agradecia que o enviasse para este meu e-mail: veromds@hotmail.com, a fim de lhe enviar um convite para visualizar o meu blog! :)
Beijinhos*** (momentos de evasao)
Querido Besnico,
que bom ler-te! Soube-me bem vir aqui hoje e deparar-me com um texto tão ao jeito do "tio Besnico", agora que ando por terras distantes, a falar línguas diferentes, com gentes outras.
Beijos e até breve.
Lindo o texto , numa prosa quase poética.. Parabéns, Um abraço..
Eu sabia que já me tinha cruzado contigo....
Usavas calções e camisa e passeavas-te no Campo Pequeno e no Campo Grande....
....... e eu ali, na Av. da República, mesmo ao pé da ponte do combóio que, quando passava, tremia o prédio por todo o lado...
... eu sabia............
Beijinhos, Besnico
Muito bem contada, esta história! :-)
Gostei muito. :)
Caro Besnico, como gostei desta história...
Como sinto também que, à medida que se cresce, nossas pontes ficam outras, cada dia maiores, cada dia mais distantes...
Mas, meu comandante, quando estreiar o descapotável não se esqueça de mim...eu prometo usar um lenço, daqueles esvoaçantes...
Beijo
Princesa
www.espelhos.blogs.sapo.pt
PRINCESA - Apetecia-me cantar… “vou levar-te comigo – vou levar-te comigo – trá lá rá lá….”
Sim um lenço esvoaçante, mas apenas um lenço curto… não uma “echarpe”.
Não gostaria que ficasses na história como Isadora Duncan.
Tem aqui um bom site, e ao pé de mim tenho uma chata.
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