26 junho 2007

A IMPORTÂNCIA DOS AROMAS

Vale o que vale. Provavelmente já leram este texto no meu antigo “blog” a que chamei “Escritos de um analfabeto”.
Sempre que escrevo, dedico essas linhas a alguém, ou escrevo para alguém. Hoje escrevo para mim e dedico este conto a mim próprio.

* * *

Não sou velho, mas já ultrapassei a meta dos cinquenta anos e assim, se me é permitida a expressão, “dedico-me” este conto, ao companheiro dos bons e maus momentos, com o qual nasci, com o qual fui envelhecendo e com o qual irei morrer.
Não me importo meu velho Eu, que outros leiam alguns dos nossos sentimentos. Sabes, muita gente há que vive tão só que nem consigo próprios falam e claro está muito menos se escrevem.
Isso é muito triste, pois não há solidão maior do que aquela que experimentamos quando deixamos de falar a nós próprios.

Caminhando pela vida por vezes chegam até mim aromas, sons e outros estímulos sensoriais que me transportam a dimensões muito para além da razão e do entendimento.
Esses sons e esses aromas tem por vezes tal intensidade que despertam na mente desejos, recordações e sentimentos tão fortes que muitas vezes é possível materializar e reviver épocas passadas.

Quando estou só comigo, fico subitamente rodeado por paisagens maravilhosas, de cores suaves e desloco-me por caminhos perfumados pelos naturais odores da natureza, caminhos onde me encontro com pessoas e coisas que fizeram parte desse ambiente num certo espaço e tempo. Caminhos onde misturado com o perfume das flores silvestres, posso distinguir o cheiro forte dos animais, ou o odor da farinha moída, que emana dos sacos de linho branco amontoados no celeiro à muito desaparecido.

Posso ainda escutar com clareza o chiar da roda da azenha que o tempo parou, ou o rilhar das rodas de um carro de mato que há muitos anos deixou de passar sobre a areia grossa do carreiro.

Distingo claramente a figura da Sr.ª. Júlia e do Sr. Luís, velho moleiro, ou do banheiro da praia, numa roda de crianças a quem ele banhou com o amor de um pai.

Nestes caminhos nunca estou só, nunca estou longe ou perto, nestes caminhos nunca estou separado de alguém ou de uma época, porque simultaneamente posso estar em toda a parte, apenas com um, ou com todos, porque nos caminhos do espírito não há espaço nem tempo, e todavia tudo se passa dentro de espaços e tempos certos.

Agradeço a Deus a faculdade dos sentidos que me permitem captar os odores, os sons e as imagens daquilo que me rodeia, ainda que em tempos passados.

Foi hoje por esses caminhos, em Junho de 1996, uma 2ª feira dia de trabalho, pelas oito horas da manhã, que sai de casa para ir trabalhar. Estacionei o automóvel na frondosa avenida dos Príncipes, entre a estação do comboio e a praia da Parede. Quando cheguei à plataforma da estação uma brisa fresca soprava do mar transportando com ela o aroma dos pinheiros aquecidos pelo sol e o cheiro da natureza e dos velhos caminhos, por onde apenas circulam alegres e descuidadas criaturas místicas.

Enquanto esperava absorvia até ao âmago aquele perfume, e quanto mais profundamente respirava mais os fluidos do meu corpo se iam activando e, de tal modo me purificava que a paisagem se ia transformando. Pouco a pouco as modernas construções iam desaparecendo e os pinheiros iam-se multiplicando.

Fiquei a observar aquelas casas do princípio do Século, agora mais evidentes pela ausência das novas construções. Dum colégio, saia um grupo de meninas, com os seus vestidinhos brancos e chapéus de palha de aba larga dos quais se destacavam grandes laçarotes vermelhos. Em fila, mãos dadas, encaminhavam-se pelo pinhal em direcção á praia; eram alunas do Colégio de St.º António em Lisboa, vieram para a época balnear de Junho de 1924.

Uma delas, muito magrinha, transportada ao colo, veio juntar-se ao grupo, muito abraçadinha ao pescoço de um senhor de idade avançada, de bigodinho e cabelos brancos.

Aquela criança está com medo, pensei, e de repente não tive qualquer dificuldade de reconhecer nela a “sardanisca“ ao colo de seu avô, o Augusto Azevedo.

Depois de alguma resistência a menina deixou que a levassem juntamente com o grupo a caminho da praia - um sorriso e ambos se afastaram sempre a olhar para traz até á esquina; nos lábios um sorriso, no coração uma lágrima e á esquina um adeus.

O meu comboio estava prestes a chegar, apercebi-me vagamente que já tinha passado o rápido, olhei para a multidão e distingui entre os demais, Ester, a “sardanisca” no seu vestido branco de saia de roda e sapatos de salto de cortiça em cunha, como é moda agora nos anos cinquenta.

Comunicámos e fiquei a saber que naquele dia, ela e minha Tia Mariana, iam de novo partir para o Luso, Edmundo o motorista de meu padrinho ia leva-las. - Adeus mãe; despedi-me, também eu irei lá ter logo que possa, mas primeiro tenho que escrever um conto sobre a importância dos aromas.

Besnico di Roma - Jun./1996

11 Comments:

At 26 junho, 2007 18:58, Blogger Papoila said...

Besnico!
Escreve mais vezes de ti para ti, para nós lermos.
Está maravilhoso.
Beijos

 
At 27 junho, 2007 14:12, Blogger Rosa dos Ventos said...

"Não há machado que corte
a raíz ao pensamento..."

E ainda bem, para podermos deliciar-nos com as tuas memórias tão bem retratadas!
Obrigada

 
At 28 junho, 2007 22:42, Blogger Bichodeconta said...

Cheguei aqui ao acaso, e quero primeiro parabenizá-lo por se oferecer esse conto muito bonito e bem escrito.. Na minha infancia já distante.. há coisas que nunca vou esquecer, uma delas é exactamente um gato de nome besnico.. Era um gato amarelo e enorme, um dia vou contar em que circunstancia da vida esse gato faz parte da minha vida desde os meus dois anos de idade.. Voltarei para o reler e em busca de novas publicações.. Parabéns por este espaço tão acolhedor.. Bom fim de semana.

 
At 29 junho, 2007 21:49, Blogger Maria said...

"...... também eu irei lá ter logo que possa, mas primeiro tenho que escrever um conto sobre a importância dos aromas.".....

Lindíssimo, Besnico.
Escreve mais, para ti, para mim, para nós....

Beijitos

 
At 02 julho, 2007 12:17, Blogger Sei que existes said...

Lindo!!
Beijos

 
At 03 julho, 2007 11:29, Blogger Bichodeconta said...

Olá, obrigada pela visita que fez ao espaço , mas o marazul não é meu, só mesmo o bichodeconta.. Claro que vou falar-lhe um dia do gato besnico.. Deixo um abraço..

 
At 04 julho, 2007 19:19, Blogger Paula Raposo said...

Gostei imenso de te ler nestes aromas. Lindo! Beijos.

 
At 05 julho, 2007 01:40, Anonymous Anónimo said...

Bela escrita, e a promessa do café, já lá vai mais de um ano, dá para ser de semana? Um abraço...

 
At 05 julho, 2007 21:13, Blogger Bichodeconta said...

Aqui ando , deambulando, como quem procura algo com que se deliar.. ENCONTREI. Gosto de passar por aqui, gosto de o ler.

 
At 06 julho, 2007 01:36, Blogger Maria said...

Bom passeio até S. Pedro de Moel....
.... bom café no Bambi......

Beijitos, Besnico

 
At 09 julho, 2007 14:08, Blogger Bichodeconta said...

Obrigada pelo piropo, claro que a piquena , pois se é verdade que já perdeu a frescura dos dezoito, não é menos verdade que adquiriu muito de bom, tão bom que até chego a pensar que não perdi nada... Gosto muito da pessoa que foi crescendo em mim.. Um abraço..

 

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