09 outubro 2007

UMA ESTRADA QUE NÃO VAI DAR A LADO ALGUM

Antes do mais penso que devo apresentar uma explicação prévia a quem neste blog leu o meu conto “RAPAZES, AUTOMÓVEIS, MIÚDAS E PASTEIS DE NATA”, publicado em 16 de Outubro de 2006.
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Nessa texto enalteço as "virtudes” de jovens condutores de “grandes velocidades”, nos anos sessenta.
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No texto que hoje vos escrevo, poder-vos-á parecer haver contradição entre os tempos que nas estradas daquela altura, determinadas distancias levavam a percorrer, comparativamente com os tempos que mais tarde, até mesmo hoje, as mesmas distâncias demoram a percorrer.
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Se por um lado, hoje temos auto-estradas que encurtam distâncias e permitem, mesmo que abusivamente, circular a velocidades mais altas, também é verdade que a quantidade de automóveis em circulação aumentou desmedidamente, em comparação com a densidade de tráfego dos tempos mais antigos.
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Assim quando eu digo que nos anos sessenta, sem auto-estradas, condutores havia que faziam Lisboa – Porto em cerca de três horas e meia, que é praticamente o mesmo que hoje se faz em auto-estrada, não devem estranhar.
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De igual modo, devemos levar em consideração que, uma coisa é um jovem condutor, sozinho, num bom carro, ou num carro preparado para andar depressa e o mesmo jovem, um pouquinho mais velho, a conduzir um carro de família onde transporta a mulher, um ou dois filhos de tenra idade e eventualmente os pais ou os sogros, não obstante o carro ser mais moderno, mais potente e tecnicamente mais perfeito do que uma viatura dos anos sessenta.
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Levando em conta estes dados, não devemos estranhar que, no ano 2007, pela antiga estrada, penso que nenhum condutor, nem com um Ferrari com asas, consiga fazer da Praça do Areeiro, à Porta de Armas da Base Aérea da Ota, 21 minutos, como eu fazia em 1966.
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Mas não era o único a sair da Pastelaria Cinderela ás 23 horas e 35 minutos e chegar à base, quando faltavam dois ou três minutos para a meia-noite.
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Já agora e por curiosidade, não pensem que tínhamos Porsches, Ferraris ou Jaguares, nada disso; os nossos carros eram apenas, Minis–Cooper, Renaults R8 Gordini , Wolksvagem carochas “artilhados” e Fords Cortina GT.
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Lindos tempos - parecíamos uma esquadrilha de T-33 a voar baixinho. Éramos tão novos… e do nosso grupo, pese embora apenas um ou dois terem morrido em combate, a maior parte de nós, apenas “morreu de amores” ou de acidentes, “brincadeiras” com aviões ou helicópteros, mas principalmente em desastres de automóvel…
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Penso, acredito, que naquela altura, as baixas em combate já eram poucas, mas o que então mais terá dizimado a nossa juventude, cá e lá, terão sido principalmente os automóveis.
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Para os mais jovens que me lerem, fica o aviso – Tenham cuidado a conduzir. Lembrem-se dos vossos Pais…
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Do nosso grupo mais restrito, “os sete” como nos chamavam, no final do serviço militar, apenas restavam três… e eram todos excelentes condutores.

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UMA ESTRADA QUE NÃO VAI DAR A LADO ALGUM

Dedico esta história ao nosso amigo Vidaguense, Paulo Santos, autor do blog “No Interior do Norte”.

Lembro-me, já lá vão mais de 35 anos, quando a família combinava um encontro em Vidago, província de Trás-os-Montes.
Os pretextos para tais encontros de família e de amigos eram vários; ou porque era Pascoa, ou porque era Natal, ou porque seriam umas boas férias de verão, sei lá que mais. Todos os motivos eram bons para justificar uma ida a Vidago.

Recordo a emoção, a alegria, o frenesim, com que dias antes, semanas antes, se começava a preparar a atribulada viagem.

Tínhamos que preparar as malas, os fatos de banho e as roupas adequadas para o frio ou calor, consoante a época do ano.

Tinhamos que verificar se os carros estavam em boas condições mecânicas para transpor os cerca de quinhentos ou seiscentos quilómetros que nos separavam, feitos por estradas estreitas, com centenas de curvas apertadas; perigosas estradas de montanha, no verão com sol escaldante e no inverno cobertas de neve e gelo.

Nem hoje um automobilista se prepara assim para o “Paris-Dakar”. Mas o mais importante estava em combinar a viagem; a troca de telefonemas entre a família, a perspectiva da chegada:

- Está lá, Mário?! Quando é que vais…. E a avó… vai contigo?...
- Não faz mal. Eu levo os miúdos…

- Está lá ?!... Besnico… vem com cuidado, o Marão está cheio de neve…
- Obrigado Tio, eu vou com cuidado, dê beijinhos à Tia, mal posso esperar para a ver… vá cortando o presunto, que amanhã já aí estaremos… já telefonei para a Lena, chegam hoje da Madeira vou busca-los ao aeroporto…

A família convergia direita a Vidago. A minha mãe atarefava-se, nos preparativos – aí filho não vou, não vou, não tenho nada que vestir!… só vou atrapalhar naquele casarão enorme, onde nem me sei mexer…. e o frio… o frio, não sei o que devo levar vestido. Eu galhofando, dizia-lhe que levasse o fato de banho, pois que a minha sogra garantira que dava para ir à piscina.
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O Engenheiro, amigo de família, andava eufórico e vendo a minha sogra de telefone na mão a combinar os preparativos dizia:

Ponham um telefone na mão da D.ª Alice e ela fica em contacto com o mundo. Está lá… (dizia ele) o país fica informado que este ano o Natal é em Vidago; ordens da D.ª Alice!

Assim foi, ano após ano, no Natal, na Páscoa e nas férias de verão, aquela casa centenária, com dezenas quartos, juntou à mesa, simultaneamente quatro gerações; Bisavós, Avós, Pais, Netos, Bisnetos, Tios, Primos e muitos amigos.

Num Natal, aquele que eu considero o último, éramos tantos que a minha sogra, por comodidade, mandou abrir o nosso hotel que encerrava no inverno; para que lá pudesse-mos ficar todos mais bem instalados. Contratou ainda uma cozinheira, uma ajudante de cozinha e outra empregada para ajudar a servir á mesa e com a família, fazerem a consoada connosco, pois que tarde percebemos, que nenhum de nós sabia fazer comer para tanta gente, muito menos trabalhar com aquele gigantesco fogão industrial a lenha.

Naquele tempo viajar até Vidago era obra para oito a dez horas de viagem.

Num ano pela Páscoa, já então com as estradas atulhadas de carros, bati todos os meus recordes de velocidade; Lisboa – Vidago dezoito horas consecutivas de caminho.

Sair de Lisboa e apanhar já então a auto-estrada, que naquele tempo só chegava até Vila Franca de Xira. Com o movimento de carros para o Algarve e para Espanha, que ao tempo saiam pela ponte de Vila Franca e mais todos os outros que iam para o norte, demorei mais de duas horas a fazer os 25 quilómetros de auto-estrada até Vila Franca.

As curvas de Rio Maior, atravessar Coimbra, São João da Madeira, Águeda e sei lá que mais, deixavam de rastos qualquer automobilista. Mas apesar disto, íamos, íamos sempre, porque ao fundo daquela estrada velhinha, por cima da qual as copas das arvores se entrelaçavam num fraternal abraço, que nos protegia do sol escaldante no verão e que no inverno nos cobria como a nave de uma catedral de pedra branca, pela neve e pelo gelo e que terminava num lugar maravilhoso, no aconchego de uma casa centenária que nos aguardava.

Aquela estrada velhinha terminava nos braços de familiares e amigos, que já há algum tempo não víamos.

Aquela estrada terminava, nos velhos caminhos, nas veredas, nos riachos e nos muros cobertos de musgo, que foram testemunho das nossas vidas geração após geração.

Essa estrada, corria por entre montes e vales, serpenteando ao longo dos rios, muitas vezes a par com velho comboio a vapor da linha do Tâmega, que no final, cansado, nos aguardava com um sorriso de desafio, envolto numa nuvem de fumo, na estação de Vidago.


Hoje fui uma vez mais a Vidago para o baptizado de um priminho. Uma nova geração que agora começa a aparecer e dará continuidade à família.

Fui pela nova estrada e que maravilha! Senti-me como se estivesse a voar por entre os montes, sobrevoando os vales num dos meus velhos “teco-tecos” com asas, como tantas vezes fiz quando era jovem. Por fim, depois de passar auto-estradas, pontes e viadutos, quase sem dar por isso aterrei em Vidago, ao fim de apenas três horas e meia de viagem, com paragens quatro horas. Nem nos meus tempos de rapaz em contos de ficção, eu seria capaz de imaginar uma viagem de Lisboa a Vidago em tão pouco tempo.

Mas fiquei triste, chorei… á nossa espera já não estava ninguém; nem mesmo os velhos caminhos e os muros cobertos de musgo, agora tão diferentes.

Na estação abandonada, já nem a velha “Maria Fumaça” com as suas duas carruagens nos esperava. Até os carris de ferro, caminhos certos, testemunhos de partidas dolorosas e chegadas festivas celebradas com lágrimas, nem esses foram poupados - arrancaram-nos.

Estação de Vidago nos dias de hoje

Recordo numa dessas partidas do velho comboio, uma mãe que chorava à despedida do seu filho que ia para o serviço militar, dizendo num adeus, como que derradeiro:


- Ai meu filho, vais para a tropa em Lisboa, nunca mais voltas a Portugal…

Era esta a noção que as pessoas tinham da distância.

O nosso hotel e a casa da Avó Velhinha, fechados. Recentemente vendidos e em ruína, já não nos esperavam. Cheios de razão, olharam para nós tristes e com desprezo.


Em primeiro plano o nosso hotel, ao fundo a casa da "Avó Velhinha"


Interroguei-me, pensei, para que quero eu esta estrada nova, que me leva tão rapidamente ao fim...

UMA ESTRADA QUE JÁ NÃO VAI DAR A LADO ALGUM