26 julho 2007

ESCUTANDO OS VELHOS DA PRAIA

Meus queridos amigos, tenho uma boa e uma má notícia para vos dar.
A boa notícia é que, vão ficar livres de mim até finais de Agosto.
A notícia má é que eu volto e vou deixar aqui um conto para lerem na minha ausência, o que ainda é pior.

Digo-vos ainda que estas vão ser as minhas últimas férias; em Setembro estarei reformado e depois não sei como vai ser, no que respeita a férias?...
Se não as posso gozar, terão que mas pagar, ou aumentar mais um mês ao calendário para que os reformados tenham um mês para férias.
Sim porque isto de estar reformado é a tempo inteiro!... e as férias “carago” ?!...

O conto é extenso, mas vão ter um mês para o ler e criticar, principalmente a falta dos “hifens ou hífenes”, juro que não sei como se escreve esta palavra, mas não quero saber, e outros erros ortográficos, que penso serem sabotagens do computador. (mas já não faz mal pois que a Senhora Ministra diz que não devem ser tidos em conta na avaliação das provas escritas dos nossos estudantes – “oços do ofissio”)

Quem se vai atirar ao ar com isto é a nossa amiga “apc”, para quem envio muitos beijinhos.



Nota do Autor:

Este conto é um excerto, ou melhor dizendo; são pedacinhos de um “livro de contos” que eu um dia poderei vir a escrever, se a preguiça não me vencer…

Dedico-o a todas as vendedoras de bolos e batatinhas fritas das praias de Portugal; bem como a todos os “Tarzans” que por aqui apareceram e que nalguns casos muitas vidas resgataram ao mar.

Tudo o que aqui se relata é pura ficção (será?...) todavia admito que o nome de “Graça dos Bolos” foi inspirado num nome verdadeiro de uma vendedora de bolos da praia de Carcavelos, a quem pretendo deste modo recordar, pese embora o retrato físico não corresponder à realidade e saber que a senhora, graças a Deus ainda é viva e de boa saúde.
Tudo o resto é invenção excepto a figura de “Catitinha”.

A praia focada poderá ser uma qualquer ao gosto do leitor e os velhos da praia... bem; os velhos da praia, esses, serão sempre e eternamente os mesmos.

* * * * *


ESCUTANDO OS VELHOS DA PRAIA


Não volto mais aquela praia.
Aquele mar que me viu nascer.
Praia com menos areia
e mais gente que não quero conhecer.


Poderia ser assim a primeira quadra de um poema, todavia não é mais do que o arranjo de uma frase que, sentado na muralha da praia, escutei a um grupo de velhotes que ali conversavam.

Dizia um deles:

- Saiba o senhor que esta praia, mudou muito. Fizeram-se grandes melhorias; antigamente não havia aqui lixo nenhum, mas agora há caixotes de lixo e lixo espalhado pelo chão em toda a parte.
Era muito agradável estar aqui a ouvir o mar. Tínhamos uma equipa de Volei de Praia e jogávamos ao mata com o “ring” .

O outro acrescentou:

- Até tínhamos uma equipa de Hóquei em Patins mista, com rapazes e raparigas; já naquele tempo!
Tu jogavas lá! Era no campo de patinagem, lá em cima ao pé do ténis... os outros gajos ficavam baralhados, nunca tinham visto as miúdas a jogar hóquei e tinham medo de as magoar, elas aproveitavam a hesitação deles e roubavam-lhes a bola.
Lembro-me tão bem como se fosse hoje, do jogo dos “Tuti-fruti” contra os “Gelados de Limão”, quem marcou foi a miúda alemãzita, a Ingrid.

- Só não tínhamos era microfone e alto-falantes, não fazíamos barulho nem incomodávamos ninguém, como aqueles senhores ali em baixo, que para eu falar com vocês tenho que estar aqui ao berros por causa lá daquela merda. Desde que os gajos vieram para aqui, que não pára este barulho, chamam àquilo música?!
Já nem se distingue daqui o marulhar das ondas. Olha as gaivotas é que fizeram bem, quando saíram daqui os últimos barcos da pesca, as gaivotas abalaram também, há anos que não vejo por aqui uma gaivota, acredite!

Aquela praia serena,
onde cada ano que passa.
Não vejo a Graça dos Bolos,
só vejo tolos, sem graça.

- Não; não venho mais a esta praia.

Dantes parece que estou a ver; pelas dez da manhã... Naquela época as famílias vinham para a praia muito cedo. À hora do calor a praia estava deserta, os últimos a sair ficavam no máximo até à uma da tarde. O normal era sair da praia ao meio-dia, principalmente as crianças.

Da parte da tarde já nem todos voltavam á praia, era hábito as crianças dormirem a seguir ao almoço, chamavam-lhe fazer a sesta, enquanto os adultos sentados nas esplanadas do pinhal, jogavam cartas, a Canasta e um jogo chinês com pedras tipo dominó o Majongue.

Depois da sesta, os jovens davam grandes passeios de bicicleta pela alameda do pinhal, só apenas alguns mais espigadotes voltavam á praia, e nunca antes das cinco da tarde quando o sol começava a declinar.

Como era agradável esse entardecer na praia, pretexto para encontros discretos de namoricos de verão.

Setembro, ao sol morno do fim do dia, acendiam-se paixões puras e criavam-se ilusões ingénuas - para toda a vida, acreditávamos; sonhávamos e crescíamos.

A praia ponto de encontro e de separação de muitas vidas, a praia local de referência da nossa geração.

- Mas voltando à conversa, estava eu a dizer que parece que estou ver a Graça dos bolos.
Pelas dez da manhã lá vinha ela com a rodilha á cabeça equilibrando a caixa dos bolos, no seu andar bamboleante.
Mal a víamos ao longe, já a miudagem corria para ela acompanhando-a no caminho até junto dos toldos.

Tinha estilo a Graça dos Bolos, continuava o velhote a contar e quem olhasse os seus olhos poderia velos ligeiramente marejados; tinha estilo e sabia desempenhar o seu papel.

Direita, muito direita, bata branca e Caixa á cabeça. Parava no meio da praia, sem pressas, olhava em redor como que para ver o mar e dar uma vista de olhos pela assistência, depois, com um sorriso que punha a descoberto uma fileira de dentes brancos, que o tom escuro da pele tisnada pelo sol fazia realçar, flectia as pernas levando as mãos á cabeça num gesto simultâneo e preciso, pousava na areia a pesada caixa dos bolos, mirando a clientela com aqueles olhos vivos claros, de azul do mar.

Depois cruzando as pernas, sentava-se de modo especial, ficando em roda, espalhado na areia, o seu avental escrupulosamente branco; em seu redor, um grupo de crianças acocoradas no chão, queixo entre as mãos e olhos fixos na caixa. A Graça explorava gostosamente o momento.

Cumprimentava uma ou outra mãe, inteirava-se do estado de saúde da avó de quem este ano estranhara a ausência e ia distribuindo sorrisos.

Todos na praia a conheciam; de súbito, deixava cair a tampa da caixa e com gesto estudado puxava para fora, um a um, os tabuleiros dos bolos expondo o surtido e dando início á confusão:

- Graça, quero uma bola!
- E eu quero uma cornucópia
- Quanto custa este?
- Graça dá-me um nata, que a minha mãe paga ali !

Cheia de paciência, época após época, lá ia ela atendendo a clientela, enquanto os raios prateados do sol, um a um, se iam acumulando na sua cabeça.

Vendeu bolos aos pais, mais tarde aos filhos e até aos netos. Todos na praia nos convencemos de que era eterna; que fazia parte da praia tal como o barco do banheiro, os toldos e as dunas.

Cada época que começava chegava-mos á praia e lá estava o mar, a areia, os toldos e a Graça dos Bolos.

Continuando, o velho aspirou fundo o fumo do cigarro, que mais do que uma fumadela, foi o abafar de um suspiro. Tirou os óculos e de cabeça baixa, em silêncio, limpou demoradamente as lentes. Os outros acenderam os cigarros e fitaram o mar muito para além do horizonte.

Depois retomou a conversa:

- A única coisa que não mudou cá na praia foram as batatas fritas, tem sal com’a merda e lixam-me a tensão arterial ...
A graça dos Bolos já não a vejo á anos, se calhar já não vende, se calhar até já morreu.

- Éh! ... respondeu o outro. Há miúdos do nosso tempo que já p’ra cá não vem há anos.
O Victor João, lembras-te? ... não sei se o gajo se chegou a formar? ... e aquela miudinha muito bonita, a Bébé; e o Guimas? ... nunca mais soube nada deles.
- Vou deixar de cá vir; já nem os putos do nosso tempo p’ra qui vem.
Isto está cheio de gente nova que não quero conhecer.

... e os meninos meus amigos,
já p’ra qui não vem brincar.
por cada ano que passa,
há menos um p’ra contar.

- Vou para outra praia que tenha mais areia e menos recordações. O mar, o raio do mar, foi levando a areia deixando a saudade e a recordação. Vou-me embora, vou! Este é o último ano. Oh se é!

O outro respondeu:

- Vocês lembram-se do Catitinha !? ... o velho era castiço, figura imponente todo vestido de branco, chapéu, até os sapatos; usava sempre fato completo e bengala. Andava sempre onde estavam crianças, julgo que corria as praias todas.
Constava que o velho tinha muito dinheiro, realmente vestia bem, e que lhe teria morrido um filho ou o neto, vitima de atropelamento; o velho “passou-se”, e desde então percorria as praias de todo o país distribuindo rebuçados á criançada que o seguia. Estava sempre rodeado de miúdos.
Não havia automobilista em Lisboa que o não conhecesse, nem pai que não lhe apresentasse o filho.


Num inverno, ia eu com o meu pai no Rossio e estavam uns miúdos para atravessar. Como sempre, Catitinha, saltou para o meio da rua erguendo a sua bengala fez parar o trânsito, depois ajudou os garotos a atravessar a rua; até os polícias lhe tinham respeito.

- Isso, respeito é aquilo que já não há.


- Há raios partam a maré, cada vez que desce leva-nos a areia, leva-nos o tempo, só deixa ficar os escolhos e as recordações.
Não, pró ano já cá não volto, vou para um sítio onde seja tudo novo e nada me faça lembrar isto ou aquilo.

Com um assentimento de cabeça e um brilho no olhar o outro velhote que até então estivera calado saltou para a conversa com uma pergunta espantosa:

- Óh rapazes e o Tarzan !? ... o Tarzan da praia, lembram-se dele?

Não sei se alguém ao certo saberia a sua origem ou até mesmo o seu verdadeiro nome. Mesmo quando se lhe dirigiam chamavam-lhe Tarzan .

Não sei o que fazia ou qual era o seu modo de vida. Aparecia na praia no início da época, já com a pele morena do sol, e tão misteriosamente como aparecia voltava a desaparecer no final do verão após a partida dos últimos veraneantes.

Para uns era um vagabundo ou talvez filho de algum pescador ou de gente da terra.

Para as senhoras elegantes e quarentonas ele era provavelmente um "play-boy", filho terrível de boas famílias. Todavia julgo que ninguém sabia onde morava ou estava hospedado.

Os maridos ciumentos falavam dele com desdém e achavam que seria apenas um proxeneta em busca de aventuras fáceis e explorador de mulheres volúveis.

Realmente o Tarzan cuja alcunha se devia ao facto do seu corpo musculado apenas estar coberto por uma minúscula “tanga”, imitação de pele de leopardo, o que na época em que os homens respeitáveis e chefes de família, usavam fato de banho com alças e meia perna, era considerado um escândalo, uma verdadeira obscenidade, só podendo ser concebido o seu uso por um indivíduo ordinário e sem princípios.

Todavia nem o Tarzan parecia incomodado com isso, nem as elegantes mamãs da época, que amiúde, sobe os olhares furiosos mal disfarçados dos maridos, se acercavam dele e lhe pediam:

- Oh Tarzan, importa-se de levar o meu menino ao banho? Ele não sabe nadar bem e logo hoje que o mar está tão bravo.
Oh Tarzan, podemos nadar?... Como acha hoje o mar?... o Tarzan fica por aqui, não fica?... é que se houver correntes fortes com o senhor aqui estamos mais seguras.

Porém se na realidade alguém estava em risco de ficar no mar, rápido como uma seta, o Tarzan atirava-se á água e em braçadas vigorosas alcançava o náufrago arrastando-o para a praia enriquecendo assim a lenda a seu respeito e dos seus heróicos salvamentos.

Contava-se a história de um ou dois salvamentos particularmente arriscados que teria feito, pelas marés vivas de Setembro, quando o estado do mar e a forte rebentação impedira a saída da chata para a água e a distância a que os náufragos já estavam da costa, desencorajava qualquer tentativa de salvamento.

Sete, sete duma vez, continuava o velhote a contar, só dessa vez ajudou ele a tirar da água; dois deles infelizmente já mortos.
Foi uma desgraça, um dia negro nesta praia, um dia que não mais esquecerei. Veio a aldeia em peso para a beira-mar ao toque da sereia dos bombeiros, que já não puderam fazer nada.


Terrível, terrível, e ia abanando a cabeça como se quisesse afastar as imagens que tinha gravadas na mente.

- Tinha o corpo parecia um Cristo, todo ensanguentado, das unhas dos desgraçados, que viram nele a única esperança de salvação. Caiu de joelhos na areia com um urro tremendo e pôs-se a rezar.

Julgo mesmo que era apenas por estes feitos de bravura que as autoridades da época e os maridos ciumentos toleravam, ainda que de má vontade, a presença de semelhante espécime na praia.

O Tarzan era o centro das atenções do mulherio.

Alto cabelo curto e revolto como as ondas do mar, de onde se destacavam leves madeixas alouradas pelo sol. O seu corpo, muito moreno bem musculado e sem pregas de gordura, cintura fina, poderia esconder um homem cuja idade difícil de determinar rondaria os trinta ou quarenta anos.

O rosto no qual brilhavam uns olhos catraios castanhos e vivos, bem poderia ser de um jovem de vinte, como pelos vincos da pele verrumada pelo sol, poderia ser de um homem muito mais velho.

Como adorno apenas um fio de ouro pendente do pescoço no qual balançava uma cruz com um Cristo; no pulso apenas duas voltas de uma fina pulseira igualmente em ouro.

Não usava relógio. O Tarzan, tal como a Graça dos Bolos fazia parte da praia. O tempo para ele parecia não contar. Tal como os gatos selvagens apenas precisam de saber se é de noite ou dia, se está ou não na época do acasalamento, se é verão ou inverno. Porque eles tem todo o tempo ao seu dispor e o tempo para eles é toda uma vida. Começa e acaba um dia. Não interessa quando, nem como.

Começa quando tomam consciência que são gente e acaba subitamente, num fim de verão, nos braços de uma onda, na lágrima de uma amante, num último pôr de sol.

Depois, depois ninguém mais se lembra, ninguém mais fala dele, apenas um velho na praia ocasionalmente com amigos, poderá formular uma pergunta á qual não espera resposta:

- E o Tarzan da praia, lembram-se dele?...

Este vento como d’antes,
que me traz o cheiro do mar.
Recordações distantes,
d’uma praia, d’um lugar…

11 julho 2007

FEELINGS

São coisas, aromas, sabores e outros estímulos sensoriais que nos ficam gravados no inconsciente para o resto da vida e que a dado momento, accionados por qualquer mecanismo desconhecido, reaparecem e nos transportam a outras dimensões…
* * * * *

Hoje fui a Lisboa à Av. 5 de Outubro, próximo da qual vivi a primeira metade da minha infância.

Na esquina da avenida Barbosa du Bocage, olhei para Norte e vi a moderna ponte de comboios que a atravessa. Foi então que me recordei de quando eu era menino com cinco seis anos de idade.

Quando íamos para fora, na Primavera ou no início do Verão, saíamos da avenida Barbosa du Bocage, voltávamos à esquerda na avenida 5 de Outubro, e cruzávamos por baixo a tal ponte dos comboios; não esta, mas a outra, a antiga em ferro negro. Para mim, menino que era, cruzar aquela ponte representava o início das férias.


Anos 40/50 - Antigo viaduto da Avenida 5 de Outubro em Lisboa 


Viaduto Avenida da República - Lisboa anos 40/50
(fotografia de Armando Serodio)

A ponte não estava longe da esquina da minha rua, apenas umas centenas de metros, como ainda hoje. Mas na minha ingenuidade de criança, era para alem dela que começava o mundo.

Era por ali, pensava eu, que se saia para outros espaços de que ouvia falar nas conversas de adultos, quando falavam de Paris, Mónaco e da “Riviera Francesa”, que aqueles senhores elegantes que nos visitavam e meus familiares tão bem conheciam e tanto gabavam.

Também era por ali, pensava eu, que se saia para o Estoril, que eu não conhecia.

Falavam baixo e de modo não explícito, por causa da criança que brincava no chão e que era eu, ou seria por causa das senhoras, suas esposas, que tagarelavam próximo sobre os vestidos e as capelines que tinham estreado no Buçaco ou em Biarritz no último verão?!...

Os homens contavam as suas aventuras e eu criança adivinhava, entendia, mulheres e automóveis, e não via mal nenhum nisso.

Elas também falavam do senhor que tinha uma lancha a motor no Estoril e do outro que era muito bem parecido e ia para o Luso num Ferrari.

Para mim, tudo isto começava para lá daquela ponte misteriosa que ficava ao fundo da avenida 5 de Outubro, e tinha a certeza disso; então não era por lá que nós passávamos quando íamos para o Luso ou para São Jorge para casa da Maria do Rosário?!...

Fui crescendo, e com isso autorização para me deslocar sozinho para a escola e ir até à tabacaria da esquina comprar lápis e borrachas, mas sem sair do passeio. Sim que era necessário ter cuidado com os automóveis, não fosse dar-se o caso de aparecer algum…

Um dia aventurei-me. Tinham-me dado cinco tostões (cerca de cinco cêntimos de hoje, mas com os quais se podia comprar muito mais coisas) e fui mesmo até à esquina da 5 de Outubro, olhei em ambos os lados e nem um automóvel à vista; eu era capaz… numa corrida atravessei a rua e fui à avenida de Berna a uma fábrica de gelados, onde já tinha estado com a nossa empregada e comprei um gelado de dois sabores que me custou dois ou três tostões.

No regresso, de gelado na mão, já na esquina da minha rua olhei para aquela ponte mágica e pensei:

- Um dia quando for crescido vou passar aquela ponte sozinho… talvez de automóvel!?... num descapotável como o senhor Sousa quando vai visitar a amante.
Claro que eu não sabia o que era uma amante. Não percebia se era bom ou mau, falava-se tanto disso, mas eu não compreendia.

As mulheres criticavam o Sousa e os homens achavam graça às suas histórias.

Uma coisa eu sabia; a Luisa, a mulher do Sousa, não gostava nada disso.

Tudo isto era comentado entre dentes, para eu não perceber. Mas perceber o quê?...

Por outro lado, se o Sousa era tão amigo da amante que até lhe deu um automóvel, porque é que não a trazia cá a casa para jantar connosco?... Só se era por causa da egoísta da Luisa, que parecia não gostar nada da amiga do marido.

Para mim nada disto fazia sentido. Vejam só se eu fosse proibido de brincar com a “Tutinha” só porque a minha prima Odete não gostava dela?!...

Bem, não interessa, vá lá um miúdo perceber estas coisas dos crescidos. São tão parvos que nem me deixavam ir sozinho até ao Parque Infantil do Jardim do Campo Pequeno. Eu sou capaz, já lá fui tanta vez com a minha mãe e com a minha tia… não me perdia!

Lago do Campo Grande - ao fundo o antigo restaurante e salão de chá

Mas voltando à ponte, um dia na Primavera, já rapazito com os meus sete anos, fui com a minha Tia ao Campo Grande, andei de barco no lago e depois fomos lanchar á Tágide, um salão de chá muito elegante sobranceiro ao lago, com um grande relvado e que pelas cinco da tarde, nos anos cinquenta, com orquestra ao vivo, se realizavam “Os Chás Dançantes da Tágide” transmitidos em directo pela rádio.

Salão de chá do lago do Campo Grande em Lisboa 1943

O local era frequentado por gente elegante, mamãs solteiras e tias com os seus sobrinhos, de calções, lacinho e sapatos de verniz, como mandava a solenidade do local.

Por perto os “senhores Sousas” acompanhados com as amigas de quem as mulheres não gostavam. Bem feito, se não fossem tão egoístas podiam ir e dançar também ou conversar com as amigas, como a minha Tia.

Pois é meus amigos, “feelings”.

Tal como hoje, já passei aquela ponte muitas vezes. Mas agora que estou mais velho, as minhas pontes estão cada vez mais longe. Mas ainda penso muitas vezes que:

- Quando for crescido hei-de passar aquela ponte sozinho, num carro descapotável, como o senhor Sousa quando ia visitar a amante.

Ilaha do lago do Campo Grande - Lisboa anos 50

Ponte de acesso à ilha do lago do Campo Grande - Lisboa anos 40/50