“LA BOHEME” - VOU FALAR-VOS DE UM TEMPO…
Não esperem muito, pois o engenho é pouco e a alma pequena.
Não vou traduzir a letra; palavras há que se não traduzem… sentem-se, apenas.
A letra a azul, corresponde ao poema original, a letra preta o sentimento e as recordações, que o poema me inspira.
Como cenário, as minhas cidades dos anos sessenta; Paris e Lisboa.
Que tenham tanto prazer ao ler-me, como eu tive prazer em escrever e se a emoção vos assaltar… escutem de novo “Lá Boheme” na voz de Aznavour, se puderem metam-se num avião, vão até Paris e em Montmartre, diante um café-creme, absorvam até ao âmago o espírito da praça de Tertre, por onde passaram tantos boémios, loucos e jovens artistas e se viveram arrebatadas paixões.
* * * * *
Que les moins de vingt ans
Ne peuvent pas connaítre
Montmartre en ce temps-lá
Accrochait ses lilás
Jusque sous nos fenêtres
Et si l´humble garni
Quinos servat de nid
Ne payait pás de mine
C´est là qu’on s’est connu
Moi qui criait famine
Et toi qui posais nue… … … … … …
Não me lamentava das misérias, eu tinha outro estatuto social, mas nem os meus pais, nem eu, "nadávamos" em dinheiro, apenas vivíamos um pouco melhor.
A vida na altura era difícil para todos. A vida na altura tinha o sabor gratificante das coisas conseguidas com esforço e preserverança, e não a insipidez da vulgaridade e da abundância oferecida, como as mulheres da rua.
Até as prostitutas, guardavam um certo recato e decência, no seu oferecimento discreto; resquícios de dignidade, na indignidade e miséria das suas vidas.
Até as prostitutas na sua arte eram difíceis… o que mantinha a ilusão.
Fotografia de Mauro A. Fuentes (Internet)
Conheci-a nas vésperas de um Rally automóvel, onde por acaso, nem eu nem ela participávamos. Éramos naquele dia meros espectadores.
Vi-a e desde logo percebi que estava ali a mulher da minha vida. Estava triste, acompanhava um corredor que por infelicidade era meu amigo.
As coisas entre eles não andavam bem, mas não interferi, mantive-me afastado de ambos porque percebi que não lhe era indiferente. Tínhamos então vinte e poucos anos de idade.
Nos meus ouvidos ressoava a música de Roberto Carlos “A Namoradinha de Um Amigo Meu” e só me lembrava de que “… o que é dos outros não se deve ter…”
Não sei como aconteceu, mas alguns dias depois numa das suas escapadelas a Lisboa, encontramo-nos para lanchar na pastelaria Versalhes.
Acho que uma mulher tem de se saber vestir e até no despir tem que ter “charme”.
Naquele dia ela soube apanhar-me, não fui eu que a conquistei, foi ela que me apanhou; pela elegância de "provinciana sofisticada", pelo seu primoroso cabelo penteado por, obviamente, um cabeleireiro caro.
O seu cabelo castanho claro, aquele penteado que à época se designava de “enrolado atrás em banana”, mexeu comigo.
Os seus olhos esverdeados, tristes, sobressaíam da sua pele sedosa e morena. Ainda hoje sou capaz de descrever ao pormenor os seus modos, seu vestido e os seus sapatos pretos, abotinados, de meio salto; bem ao contrário dos sapatos rasos de condutora e dos blue-jeans gastos, que exibia quando corria em provas ou aparecia no “Bambi” em São Pedro de Moel para tomar o café. Mas mesmo em “jines”, toda ela era sedução.
Quando sorria, quando ria, a sua expressão luminosa, era de enlouquecer um homem.
O decote, discreto, deixava adivinhar uns seios brancos, carnudos e firmes.
Percebi naquele momento, que estava ali a minha desgraça. Estava ali a voz melodiosa, que proferia palavras comedidas, cantadas. As palavras que um homem gosta de ouvir.
Estava ali a mulher da minha vida, que desde o início eu pressentia que iria perder.
Como um rato em frente de uma serpente, o encanto era tanto que não lhe conseguia fugir.
Na avenida de Roma, não num quarto alugado como diz a canção, eu não retocava desenhos, nem ela pousava nua. Mas um dia, talvez ao som de Aznavour, modorrando num sofá, as minhas mãos deslizaram para aquele decote misterioso. Ela não ofereceu resistência, e terá começado aí, talvez, a mais breve, e mais bela história de amor, a que alguém, algum dia, terá sido dado viver.
Mais uma fotografia roubada na "net"
Lá bohéme, la bohéme
Ça voulait dire on est heureux
La bohéme, la bohéme
Nous ne mangions qu’um jour sur deux
A boémia, a boémia, e isso queria dizer que éramos felizes.
Dans les cafés voisions
Nous étions quelques-uns
Qui attendions la gloire
Et bien que miséroux
Avec le ventre creux
Nous ne cessions d’y croire
Et quand quelque bistro
Contre um bom repas chaud
Nous prenait une toile
Nous récitons dês vers
Grupés autour du poêle
En oublient l’hiver
Lá bohéme, la bohéme
Ça voulait dire tu es jolie
Lá bohéme, la bohéme
Et nous avions tous du genie
Em Paris, Montmartre, tal como em Lisboa, também os artistas e os boémios, tinham as suas áreas, os seus locais de vida.
Praça Duque de Saldanha - Lisboa (anos 60)
Tal como diz a canção… “pouco mais que miseráveis esperavam pela glória e não deixavam de acreditar”
Com o estômago oco (vazio)
Não deixávamos de acreditar na glória
E quando em alguma tasca
Em troca de comida quente
Que pagávamos com uma tela
Nós recitávamos versos
Juntos de um aquecedor
Esquecendo o inverno
A boémia, a boémia
Isso queria dizer tu eras linda
A boémia, a boémia
E nós tínhamos ideais
Recordo Lisboa e os seus artistas. Recordo a pastelaria “Tarantela”, no largo D.ª Estefânia, onde nos juntávamos e o café “Vitória” mesmo na esquina.
Por falar em barriga vazia, recordo a “Tasca do Careca” onde se serviam uns pratos de suculentas “Iscas com elas” e onde igualmente, quando o dinheiro era pouco, se podia enganar a fome com um prato de molho de iscas, um pão e uma “Lambretta”. O “banquete” não custava mais do que doze tostões, um pouco mais barato do que dois bilhetes de eléctrico, Lumiar – Rossio, que na altura andavam por sete tostões cada.
Para os mais novos, direi que, a “Lambretta”, não era mais do que um copo de cerveja, mas com a particularidade de ser o aproveitamento da espuma que escorria das verdadeiras canecas de cerveja acabadas de tirar, a que o taberneiro dava um pouquinho de pressão á torneira.
Como diz meu primo Fernando Alves - boémio, filho de Lisboa e que estudou na António Arroio:
- Lugares esses, onde as mulheres fumavam e tratavam os homens por tu…
Sonhávamos e escutavamos o som roufenho de uma máquina de discos de vinil, onde colocavamos uma moeda para, entre outras, ouvir canções de Aznavour…
Devant mon chevalet
De passer dês nuits blanches
Retouchant le dessin
De la ligne d’um sein
Du galbe d’une hanche
Et ce n’est qu’au matin
Qu’on s’assayait enfin
Devant un café-créme
Epuisés mais ravis
Fallait-il que l’on sáime
Et qu’on aime l avie
La bohème, la bohème
Ça voulait dire on a vingt ans
La bohème, la bohème
Et nous vivions de láir du tempes
E nós, ela e eu, observávamos de fora como meros espectadores, estas vidas curiosas.
Nós não. Nós frequentávamos a “Versailles” na avenida da Republica, a “Mexicana” na praça de Londres, a “Suprema” na avenida de Roma, o “Bambi” em São Pedro de Moel, o “Forte Velho”, o Casino do Estoril e o “Muchaxo” no Guincho…
Não, não passei noites em branco a retocar desenhos, mas passei noites em branco, rapando a estrada entre Lisboa e São Pedro de Moel, em velocidades vertiginosas, para a visitar em segredo.
Ela correspondia, nas histórias e pretextos que inventava para justificar aos Pais; aqueles maravilhosos e ternos senhores, as suas escapadelas para vir a Lisboa.
E tal como diz a canção, quando pela manhã, me sentava para tomar um café-creme, estava exausto mas feliz, era preciso que nos amassemos muito… e amassemos a vida.
A boémia, a boémia
E isso quer dizer que tínhamos vinte anos
A boémia, a boémia
E nós vivíamos do ar e do tempo
Hoje, tal como na canção também me aconteceu a mim…
Quando au hasard dês jours
Je mén vais faire un tour
A mon anciene adresse
Je ne reconais plus
Ni les murs, ni le rues
Qui ont vu ma jeunesse
En haut d’un escalier
Je cherche látlier
Don’t plus rien ne subsiste
Dans son nouveau décor
Montmartre semble triste
Et les lilas sont mortes
La bohème, la bohème
On était jeunes, on était fous
La bohème, la bohème
Ça ne vout plus rien dire du tout
Hoje quando por acaso visito Lisboa, também eu já não reconheço, nem as casas, nem as ruas e Lisboa na sua nova fisionomia parece-me triste.
Já não vejo o Munumental, o parque Mayer, o Cais das Colunas e tantos outros sítios da minha juventude… As andorinhas partiram e as Sardinheiras morreram…
A boémia, a boémia
Éramos jovens, éramos loucos
A boémia, a boémia
E isso já não quer dizer mais nada
Também para mim, isto, já não quer dizer mais nada….
Nota: Se quiserem saber ou recordar como eram as "minhas noites", voltem a ler o conto que escrevi em 16 de Outubro de 2006, a que chamei “RAPAZES, AUTOMÓVEIS, MIÚDAS E PASTEIS DE NATA” – está neste blog, procurem.