CINEMA E UMA CHAVENA DE CHOCOLATE

Já passou o tempo, inexoravelmente; não podemos voltar a trás. Mas se no teu sangue ainda correrem vestígios do sangue, desse exemplo de bondade e tolerância que foi teu pai, permite ao menos que se alguma culpa tenho, me seja concedido o direito de me explicar. Só assim poderei morrer em paz.
.
Tenho em mente a ideia tratar das imagens, preserva-las guardando-as em DVD, como recordação.
.
Naquele tempo o cinema amador era mudo e o som colocado posteriormente; na falta do som original, que nunca coloquei, pensei valorizar as imagens adicionando-lhes uma adequada música de fundo, eventualmente incluir uma ou outra legenda ou até um comentário.
.
Som original para quê?!... aquelas imagens falam por si…
.
Nelas pude ver, meus pais, minha avó, meus tios, gentes e locais que o tempo apagou. Foi então que, meu Deus… já nem me lembrava; surgem na tela imagens dela e minhas… nós, com vinte e poucos anos de idade… bateu-me forte o coração, quase sufoquei… nem quando a vi pela primeira vez o meu coração bateu assim.

.
Depois, descendo a escadaria de sua casa, aparecem os pais dela.
.
A mãe… bonita senhora, cujos cuidados com a filha eu só passei a entender quando também fui pai de uma rapariga.
.
Depois o pai dela; esse grande senhor, cujo coração debilitado, pleno de bondade, era todavia suficientemente forte para albergar os amigos e os mais desfavorecidos da sorte, que dele se abeirassem ou que deles tivesse conhecimento.
.
Tive o privilégio de o conhecer, concedeu-me a sua amizade e nas nossas truculentas discussões políticas, aprendi algo que haveria de marcar para sempre a minha maneira de ser – o valor da lealdade e da amizade.
.
Naquele fatídico dia, ela perdeu o pai e eu perdi um amigo… um amigo a quem, sem o saber, falava pela derradeira vez… um amigo a quem dei a minha palavra… e Deus sabe que não pude - não me deixas-te cumprir…

Velha não, apenas antiga.
Mas por mim podes tomar conhecimento dum mundo que não conheceste.
.
Na tela as imagens continuavam a passar; de má qualidade, desfocadas, não sei se pala antiguidade da película se pelo fumo do meu cigarro que me embaçava a vista.
.
Agora eram os meus pais a entrar no carro e ela a conduzir. Já tenho visto mulheres a conduzir bem, mas como ela… era louca por automóveis.
.
As imagens saltaram, desapareceram da tela. Na máquina a bobine rodava, rodava, fazendo aquele barulho de fita solta; tinha chegado ao fim.
.
Durante largo tempo ali fiquei, apático, imóvel, perdido nos meus pensamentos, mergulhado em recordações…
.